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António, pescador de sonhos

 

A noite descobria-se do manto negro e no horizonte, junto à Ponta do Topo, o dia raiava por entre nuvens douradas. A lua dissipava-se no céu azul, riscado por voos de pássaros envergonhados de quebrar o silêncio.
Pela ponta da baía da Engrade, uma preguiçosa embarcação passeava pelo mar manso, em direção a leste.

“Não vai, certamente, rumo à América” - cogitava António Matreiro, caminhando de cana às costas e cesto de asa no braço. “Se quando era novo me tivesse atirado para aqueles lados, a esta hora não estava aqui, correndo todos os dias para as rochas e calhaus, em cata de umas vejas para o comer das raparigas, nem tinha de ouvir aquela chata da mulher rezingando: “António, vai ao peixe! António, não tenho batatas! António, vai trabalhar!...

António, a quem puseram o apelido de Matreiro, por conhecer bem os melhores pesqueiros e segredos das marés e da pesca, desceu o caminho da costa e parou frente à Baía. A maré estava seca e, como rato da costa,  pensou por instantes o melhor local onde apanhar caranguejos para iscar  vejas.

“António, se estivesses na América não estavas agora a apanhar o frio da madrugada, nem o rossio deste mar. Haverias de estar num hotel de Nova Iorque, gozando como os ricos...mas a vida é assim. Não tiveste cabeça... agora acarta a sorte que escolheste e não te queixes...” - cogitava ele, enquanto rolava pequenos e grandes pedregulhos à procura de isca. “Anda pr'àqui, filho da p.... que não és mais que os outros...” - e atirava, com cuidado, a moira para dentro de um balde velho, cheirando a peixe, que tinha achado na costa há uns anos.

Cansado de rolar pedras cansadas de rolar, pegou no velho caniço que tanto peixe apanhava e dirigiu-se ao pesqueiro velho. O mar de leste respingava, de vez em quando, mas como a maré ainda era baixa, tomou a “froca” 1.), enrolou-a e acomodou-se na pedra do costume, onde seu pai o tinha ensinado a resistir ao peixe mais grado, sem partir o caniço nem perder o anzol. Espremeu umas batatas da ceia do dia anterior e atirou-as à água, a ver se o peixe aparecia. Limpou as mãos num pano encardido e, fitando as águas límpidas, pegou num caranguejo, levou-o à boca para lhe retirar as pernas e envolveu o anzol com a carne do bicho ainda vivo. Depois atirou a linha para a água à espera que o peixe ferrasse.

“Para que é que voltei para esta terra miserável?” - disse em surdina. “Quando fiquei em Moçambique depois da tropa, era mesmo para fugir a esta miséria. Mas o diabo da guerra, cortou-me as voltas... Se fui rico?!... Claro que fui! Tinha tudo quanto queria! Era um senhor e nunca me faltou trabalho, fosse onde fosse. Conheci Moçambique de Norte a Sul... e agora? De que me vale essa vida?”

De repente, um peixe ferrou a isca, mas António habituado às lides do mar, levantou energicamente a cana, ziguezagueando-a para cansar o animal até trazê-lo à pedra. Era uma valente veja, embora igual a tantas outras que ele se gaba de pescar, sem no entanto, mostrá-las a quem ousa duvidar.

A pescaria, decorria com alguma facilidade dada a experiência do homem, que retomava o ritual tantas vezes quantas o peixe saltava para o cesto de vimes.

“Ainda hei-de sair desta terra e levar a minha gente comigo, para onde a vida seja menos custosa. Tenho a certeza! E vou lutar por isso enquanto tiver vida e saúde!” – pensou Matreiro. “Nem que tenha de ir primeiro para o Canadá, pr'à América, p'rà Austrália, seja lá p'ra onde for. Sei que não vou morrer na loja da adega, cheirando vinho nas barricas e o fedor do peixe escalado.”

Satisfeito com a pescaria, levantou-se, olhou São Jorge e a Terceira e pôs-se a caminho: “O filho de meu pai tem de tomar um norte...isto não é vida para ninguém...”

Com estes pensamentos, antevendo já um céu aberto para o futuro da família, correu depressa para casa, onde a mulher esperava o conduto para o almoço.

“Já ninguém pode comer peixe!...” - desabafou a mulher.

“Não vai ser por muito mais tempo...” - atalhou António.

1.) Froca: camisa de cotim; casaco velho.

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